Contos

“Também o Ramos não via o fundo ao significado de ‘inócuo’. Topara por acaso a palavra, num diálogo acesso de folhetim, e gostara logo dela, por aquele sabor redondo a moca grossa de ferro, cravada de puas. Dois homens que assistiam ao barulho partiram logo dali, com o vocábulo ainda quente da refrega, a comunicá-lo à freguesia:

– Chamou-lhe tudo, o patife. Só porque o pobre entendia que a jorna de um homem é fraca. Que era um paz-de-alma. E um inoque.

– Que é isso de inoque?

– Coisa boa não é. Queria ele dizer na sua que Silvestre não trabalhava, que era um lombeiro, um vadio.” (Vergílio Ferreira, Contos, “A Palavra Mágica”)

“Não é preciso acrescentar que tomámos o poder sem custo. No fundo, todos queriam que alguém os albardasse sem lhes dar satisfações. Fizemos-lhes a vontade. E digo ‘fizemos’ porque fui um dos que tomaram parte no golpe de setembro. Às seis da madrugada, setenta e oito homens armados empalmámos o poder. Foi coisa demasiado fácil para ser brilhante, a não ser nos Anais que fizemos publicar.” (Vergílio Ferreira, Contos, “O Jogo de Deus”)

“Um boneco, simplesmente um boneco. Roberto sorria: simplesmente um arranjo de tintas. Mas, estranhamente, daí a dias ele começou a reparar que o corredor ia ficando habitado desse arranjo de tintas. Qualquer coisa que se levantava do fresco e estendia o seu influxo até à porta. Roberto entrava no corredor e sentia-o logo.” (Vergílio Ferreira, Contos, “O Fresco”)

“Esta coletânea consegue, assim, reunir, pela diversidade dos temas abordados nos seus contos e pela distância temporal a que alguns foram escritos, marcos de grande parte da evolução artística do Autor. Aqui reside, creio, o principal interesse deste volume enquanto ‘novidade’”

Ficha Técnica

Contos, Arcádia, 1ª Edição, Lisboa; 1976