Ficha Técnica

Vagão J. Coimbra : Coimbra Editora, 1944

Vagão J

“Sentou-se numa cadeira baixa, trouxe um saco de bugalhos e esparralhou-os pelo chão. Depois foi-os separando, agrupou-os, tornou a separá-los, e os miúdos iam aprendendo a soma, a subtração e toda a aldeia era repassada de uma doce ternura no calor morno do sol, na claridade frouxa, diluída e mansa. O professor dobrava-se para os bugalhos, despedia shius sem Levantar os olhos e os garotos, acocorados em roda, iam tirando dos bugalhos o mistério da contagem. Depois no livro grande, bem aberto, António aprendeu o feitio do A que queria dizer alhos, porque lá estavam os alhos bem à vista de qualquer um. Depois vinha o E das éguas, éguas bonitas, bem feitas, mas não admirava porque não eram feitas à mão, e o I da igreja com uma torre e um sino.”, Vergílio Ferreira (Vagão ‘j’)

“Para o Álvaro de Campos o binómio de Newton era tão belo como a Vénus de Milo; para nós, dizer que um rico era um filho da mãe era-o muito mais. Porque, com Newton ou sem ele, o mundo continuaria intragável; mas sem a pança burguesa, o trânsito ficaria bastante facilitado.”, Vergílio Ferreira (Prefácio do autor à 2.ª edição)

“Esteve ontem aí a jovem espanhola Carmen Martinéz com os seus papéis para a tese sobre mim. E entre outras coisas disse-me, para meu agrado, que o Vagão ‘J’, ao tempo em que se publicou, era uma revolução da linguagem. E eu disse-lhe que tanto o era, que toda a gente malhou nele por isso e eu me assustei: prudentemente recuei para uma escrita menos aventureira. Depois, pouco a pouco, voltei à tentação. Mas agora já toda a gente se acomodou ao escândalo, com o exemplo lá de fora.”, Vergílio Ferreira (Conta-Corrente 2)

“Assim, e resumindo, Vagão J gera-se entre dois espaços de ficção: a estrutura social, claustrante, e a estrutura de espanto, que preenche o espaço de alargamento, desclaustrante. O homem e a vida possíveis no primeiro espaço são caraterizados pela linearidade provocada pelo dinheiro, significante aniquilador que abafa todas as outras dimensões possíveis no ímpeto de esmagar. Gera-se assim a claustração para os ricos e para os pobres. Estes últimos, como não têm acesso à parte agradável desse espaço, veem-se privados de uma linguagem ordenada, que hierarquize, compartimentando, a vida. E a partir dessa linguagem cuja sintaxe põe lado a lado vários planos, hierarquizados valorativa e topograficamente no discurso dos ricos, se gera o alargamento em que os contrários se harmonizam e em que a linearidade monótona se quebra em favor da recuperação circular de novas dimensões a partir dos momentos de espanto, que vão enriquecer de novos tons a Harmonia (tal como o canto de Maria do Termo), encontrada numa organização possível dos momentos de espanto – aquilo a que chamei estrutura de espanto.”