1910
1916
Vergílio António Ferreira nasce em Melo, aldeia do concelho de Gouveia, no dia 28 de janeiro. É o terceiro filho de – António Augusto Ferreira e Josefa de Oliveira.
Era o começo do verão, talvez, minha mãe e a mãe dela subiam a rampa para a missa de domingo. E um momento, minha mãe hesitou com uma inesperada tontura. Parou, apoiou-se a minha avó:
– Não sei o que tenho, minha mãe.
Ela varou-a de iluminação e alarme:
– Não me digas! Não me digas que já arranjaste outra desgraça.
A “desgraça” era eu. (Vergílio Ferreira, Alegria Breve: 21)
Nasci a 28 de janeiro de 19…, às três horas da tarde de uma sexta-feira, dizia minha mãe. É a hora de Cristo, dizia minha mulher.
(Vergílio Ferreira, Alegria Breve: 21)Nasci em Melo, na serra da Estrela, a meia distância entre a Guarda e Viseu. E a sensibilidade que tenho aprendi-a ali. Mas é possível que essa sensibilidade fosse não um efeito mas uma causa, que eu tenha criado a aldeia e não ela a mim. De todo o modo houve um ponto em que os dois elementos se cruzaram e é-me assim difícil separar um do outro. Fiz-me com esse ambiente mas não sei se através dele e ele foi assim o lugar ideal para me entender com a emoção nos meus livros. Neve, desolação do Inverno e o augúrio dos ventos e a presença física e metafísica da montanha que de um extremo da aldeia se vê desdobrar-se em toda a sua massa, e o erguer por detrás dela a Lua de Verão são entre outros os motivos que se me fixaram largo tempo para saber ser sensível e entender-me a mim próprio.
(Vergílio Ferreira, Conta-Corrente 5: 576)
Praticamente dois meses decorridos, o jornal O Hermínio noticia o nascimento do futuro escritor, na sua secção “Movimento da população – Nascimentos – Em janeiro”. Virgilio, como aí surge grafado o seu nome próprio, é a última das quatro crianças que, nesse mês, nasceram em Melo.
Retrato de família em Melo (com os irmãos César e Judite e a tia Lalinha)
1919
Partida do pai, António Ferreira, para os Estados Unidos da América e, poucos meses depois, da mãe, Josefa de Oliveira, acompanhada da filha mais velha, Virgínia.
Vejo o meu pai, no limite da minha infância, dobrar a porta do pátio, com um baú de folha na mão. Vejo-o de lado, e sem se voltar, eu estou dentro do pátio e não há, na minha memória, ninguém mais ao pé de mim. Devo ter o olhar espantado e ofendido por ele partir. Mas alguns meses depois o corredor da casa da minha avó amontoa-se de gente, na despedida de minha mãe e de minha irmã mais velha que partiam também. Do alto dos degraus de uma sala contígua, descubro um mar de cabeças agitadas e aos gritos. Estou só ainda, na memória que me ficou. Depois, não sei como, vejo-me correndo atrás da charrete que as levava. O cavalo corria mais do que eu e a poeira que se ia erguendo tornava ainda a distância maior. Minha mãe dizia-me adeus de dentro da charrete e cada vez de mais longe. Até que deixei de correr. Dessa vez houve choro pela noite adiante – tia Quina contava, conta ainda. Mas não conta de choro algum dos meus dois irmãos que ficavam também. Deve-me ter vibrado pela vida fora esse choro que não lembro. (Vergílio Ferreira Fotobiografia, Org. de Helder Godinho e Serafim Ferreira: 118)
Vergílio Ferreira e os dois irmãos, Judite e César, ficam ao cuidado da avó e das tias Eulália e Joaquina. Na aldeia, os Oliveiras dominam nos negócios terrestres dos lanifícios e nos espirituais, aqui através da figura maior do Arcipreste de Melo, Manoel de Oliveira, tio-avô do pequeno Vergílio, o qual lhe ensinou os rudimentos do latim.