Ficha Técnica

Diário Inédito. Amadora : Bertrand, 2008

Diário Inédito

“Minha terra! Há dez meses!

– Morreu o Lua.

– A Chora-Vinho quebrou uma perna.

Ligeiras mudanças no tabuleiro. No resto, igual. Leva tempo que a vida se resolva a mudar uma pedra.

Ao calor benigno deste sol da tarde, vou pela borda de caminhos estropiados cobertos de pedra anónima de histórias antigas. Embrenho-me na escuridão das matas, aponto ao alto de uma serra e, a pulso, ergo-me ao redondo de uma fraga nua. No repouso da escalada, a toda a lonjura do horizonte, a serra levanta um pesadelo negro de solidão. (…) Lentamente, ao apelo surdo da montanha, sinto estremecerem no fundo remoto do meu esquecimento, forças distintas com a fecundidade de um campo regado. (…) Um veio de ternura quente e bom corre-me desta certeza de verdade para o saguão do povoado onde ainda proliferam os Garrilhos, donde partiram os Borralhos, no fundo de uma madrugada de névoa, onde o Gorra descansa ainda um momento do seu destino de vagabundo. No ângulo de duas ruas, emproando fieiras negras de casas, a loja do Nunes resplandece branca de prosperidade. Trágica a morte cobriu o casarão vazio onde há dias da comprida e alta varanda de ferro, enforquei o velho Bruno da Fábrica para o romance que escrevo. (…) Agora que o Sol tomba sereno, alguém anónimo tenta plantar lá em baixo numa leiva de milhos a flor de uma cantiga. Sinto o desespero desse alguém só voz para criar em amor a sua canção, o esforço para a modular em brando sonho. Qualquer escuro desgraça, porém, a seca na raiz.” Vergílio Ferreira (Diário Inédito)

“Fica patente, neste excerto, uma chamada de atenção de Vergílio Ferreira para a importância do espaço da aldeia natal como enquadramento dos seus romances. (…)

Mas há também nesta descrição algo que faz pensar num outro romance que Vergílio Ferreira virá a escrever muito mais tarde – Para Sempre. E não é apenas pelo facto de estar muito presente, em Para Sempre, o constante  ‘apelo surdo da montanha’ fronteira à casa da aldeia; o que é mais flagrante é a constante referência nesse romance à cantiga de uma voz anónima que vem dos campos e que explicitamente referida no diário inédito”

“Esta longa e simbólica transcrição vem, pois, ao encontro do que vimos anotando. Melhor dizendo, Vergílio Ferreira inventou uma aldeia eterna e neste Diário deparamos com os começos dessa aventura criadora, isto é, lemos aqui o rasto genesíaco em direção à ‘metafísica da sua serra’ (Cântico Final) e da sua aldeia. De acordo com o nosso conceito de topografema (inspirado nos célebres biografemas de Barthes) ou lugar da biografia do Autor que se transmuda em palco privilegiado do seu imaginário, a aldeia de Melo será sempre o mais fantástico topografema do Autor de Para Sempre simbolizando, por antonomásia, o rumor do nascimento da palavra vergiliana:

‘No rumor surdo que via por toda a serra, ouço a minha fala concreta, sinto-me de acordo.’”