Ficha Técnica
Alegria Breve. Lisboa : Portugália, 1971
Nitído Nulo
“Até que um dia cheguei a casa, emproado com o meu título académico ou quase. Havia uma escola ali perto, pré-primária diz-se, creio. Uma carrinha vinha pelas aldeias apanhar as crianças, quem pagava a escola ao miúdo [Lucinho]? tia Matilde, suponho. (…) Sabia já coisas. Aprendera coisas – como é que sabes? Eu duvidava. Como é possível saberes coisas? (…) Foi quando o miúdo me chamou da porta-
– Que é que queres?
Tinha um pau na mão.
– Anda cá.
– Que é que queres?
tinha um pau na mão, irritava-se de impaciência, eu fui. Desceu à minha frente os degraus da escada, apoiado aos varões do corrimão. No jardim em baixo havia terra mole – que é que me queres? Então dobrou-se para o chão, apontou o pau à terra. E disse:
– Anda cá que te quero ensinar a fazer o A.
Com um pau na mão. Apontado à terra. Se eu aprendesse?” Vergílio Ferreira (Nítido Nulo)
“E às três da madrugada, estamos todos de relógio em punho, uma mão invisível deu o sinal – e a revolução começou. Pelo ardor humano da justiça, pela cólera, pelo insuportável do sonho, pelo gosto de mexer, pelo desejo de estar a horas à passagem da História, pelo prazer de também ficar no retrato comemorativo, por não haver nada que fazer, pela chatice da vida, pela necessidade de tomar banho e não cheirar mal, por se querer aproveitar a esperança enquanto ainda está limpa, sem comentários das moscas, pelo gosto de mudar de fato e de camisa e talvez mesmo de cuecas, pela alegria de reinventar a manhã quando o dia já vai adiantado, por um certo excesso de energia disponível, pela força da fé, pelo remorso, porque sim – a revolução começou. (…)
E às três da madrugada, estamos todos de relógio em punho. (…) Vamos empalmar a emissora, eu sou o Verbo. Trago uma pistola mais por enfeite revolucionário, erro a pontaria a três metros, eu sou o Verbo.”, Vergílio Ferreira (Nítido Nulo)