Ficha Técnica

Promessa: Romance Inédito (1947). Lisboa : Quetzal, 2010

Promessa

“Tomámos uma camioneta até um cruzamento, onde nos apeámos. Depois, suspendendo as malas traçadas de correias, começámos a trepar para Churrasco, uma aldeia curtida de velhice, aberta entre penhascos nas grimpas de um cerro.

― Há oito anos que não via isto, ― disse Sérgio, comovido.

Pousei a mala, aproveitando um descanso.

― Porquê?

― Queria-me padre, o velho. Tomou-se de santa indignação, quando saí do seminário.

Que fosse para os infernos. E eu fui para Coimbra. Formei-me a pulso. Hoje trago dinheiro, não me vai pôr na rua. Vamos subindo?

Retomámos a carga, mas senti-me afrouxar no entusiasmo. Sérgio fazia-me parar antes de cada curva, concentrando-se todo para a explosão da novidade.

― Decorei tudo ― disse, por fim, desanimado.

Ia no entanto parando, aqui e além, frente a um calhau, a uma árvore, a um regato, explorando-os miudamente, para a sua saudade. À entrada da aldeia, berrou para a frente, pousando a mala:

― Sara!” (Vergílio Ferreira, Promessa)

“― Só no ensino superior o mestre se serve a si. Da cabeça tombam-lhe os louros ou admite-se que tombam. Os alunos apanham-nos e enfeitam-se com eles. Mas no liceu? Justamente no liceu o professor é que aproveita os louros dos alunos ― quando forem homens e tiverem louros. Resta-me o espiritual, o psitacismo do latinório.

Até mesmo o melhor do classicismo era um enfado, uma grande mole de tédio. Homero ou Virgílio, mesmo os trágicos, mesmo Platão: ― crianças que às vezes dizem coisas acertadas. Que comovem por isso.

― Para mim, para o nosso tempo, toda a bela máquina dos clássicos parece-me um perfeito relógio sem ponteiros.” (Vergílio Ferreira, Promessa)

“Podemos chamar a trama de A Promessa de hegeliana sobretudo por dois motivos centrais. Primeiro, porque o narrador-personagem é um Flávio que parece contar a história de como atingiu o estágio de autonomia plena enquanto indivíduo (que chamaremos aqui de «consciência-de-si» hegeliana, mantendo a tradução de Estela dos Santos Abreu), condição a partir da qual se recorda dos eventos que narra. Mas o que é tal consciência-de-si? Como introdução, podemos resumi-la aqui como a finalidade de um bem-sucedido processo de individuação em que o homem, após sobreviver a uma «luta de morte» e viver sob condição de «submissão» a um seu semelhante, aprende a obter de si mesmo, e não mais de um (ou vários) ser(es), o reconhecimento necessário para viver satisfeito – satisfação essa que é nada mais que a vertente humana do objetivo de todo ser vivo, segundo nos indica Kojève. É a personagem Sérgio quem protagoniza, junto com Flávio, essa relação, na qual o primeiro aparece como Senhor e o segundo como Escravo. Esse antagonismo, que está no cerne de uma introdução ao pensamento de Hegel, é, ao que nos parece, o verdadeiro protagonista do romance. Mais que isso: a estrutura da narrativa é praticamente fiel à sequência lógica (que Kojève nos apresenta) da dialética Senhor-Escravo, descrita por Hegel na seção A do capítulo IV da Fenomenologia do Espírito (cujo título é «Autonomia e dependência da consciência-de-si: dominação e sujeição»), conforme mostraremos a seguir.”

“Em Promessa temos então um narrador homodiegético (único na ficção de VF), de nome Flávio e com 30 anos de idade, que recorda, no presente da escrita e numa longa analepse, a sua existência, desde os 18 anos, ao lado do nunca por ele considerado padrinho ou pai adotivo, Sérgio Madeira, professor liceal, pintor, escritor, ‘enfim um intelectual’.

(…)

Segundo entendemos, este romance é uma promessa de mudança, na medida em que o questionamento existencial, vivido pelas suas personagens, será retomado e desenvolvido em Mudança (1949).

(…)

Já no presente da escrita, e antecipando a viragem vergiliana em relação ao autor de Mensagem, Flávio descobre na evocação da vida e da obra de Sérgio que esta foi, afinal, um ‘resumo de uma época’ (p.122), sendo-lhe grato ‘ver no seu delírio mental uma seriedade que não descubro no de outros: acreditar que as águas rebrilhantes do seu jogo tendiam a iludir o abismo donde brotavam.” (idem, itál. nosso)