Até ao Fim

“Estou parado à porta da capela, há um terreno à frente e depois a queda  a pique para as águas. Passei a noite sozinho, fui homem. Quero dizer fui perfeito. Não é que tivesse muito a conversar com o meu filho, que dorme ali no caixão. Mas o que houvesse a dizer era só entre os dois.”, Vergílio Ferreira (Até ao Fim)

“Olho-o agora na quietude da manhã. E bruscamente apetece-me insultá-lo. Estúpido, estúpido. Mas ele tinha quase um ar feliz. Estúpido, disse ainda, desarmado na minha cólera, arrasado de fadiga. O que foste fazer. Uma vida inteira para te explicar, não consegui. Explicar-te  que para lá de tudo estava a vida e isso é que era tudo. Que é que tinhas que querer outra coisa acima dela? Justificá-la é pôr outra coisa acima e tudo é mais abaixo.  (…) Nunca soubeste a verdade da luz e da chuva e do vento, a estranha vertigem de um corpo e não consegui ensinar-te. Inutilizaste o trabalho de biliões e biliões de humanos para tu existires. (…) Queria talvez admirar-te um pouco, compreender-te, não sou capaz. Se bem te lembras, nunca te pus a mão em cima, tu eras tão precioso. Mas o teu erro estúpido, só talvez esbofeteando-te.”, Vergílio Ferreira, (Até ao Fim)

“Romance atravessado por mortes de pessoas (a do filho do narrador-protagonista, que é o pretexto da memória romance, e a do pai, da mãe, da amada Oriana, da criada, do padre Caporra,etc.) ou de bichos (perdizes, cão), mortes morridas (em geral) ou matadas (padre Caporra e talvez Miguel) – mas todas da ordem do quotidiano – Até ao fim também é, no entanto, atravessado pela ironia, que até leva o autor a incluir-se nele, como fez David Mourão-Ferreira, ou a jogar com dados autobiográficos, ou a referir o seu (este) romance no seu (neste) romance.”

E há até páginas ironicamente sublimes como as da carta de Flora que não esperaríamos do cáustico Vergílio Ferreira, por sinal antigo estudioso da ironia queirosiana.”,

Até ao Fim desenvolve-se em diferentes níveis temporais, tecendo na sua hábil articulação narrativa um jogo de densas relações entre personagens configuradas simultaneamente com grande nitidez e sobriedade. São essas relações que vêm convergir na efabulação de um narrador cujo discurso se enuncia num registo que, confirmando o que de sugestivo se conhece em obras anteriores de Vergílio Ferreira, evidencia, no entanto, uma apreciável capacidade de rejuvenescimento estilístico.”,

“Velando Miguel, o filho morto, Cláudio, o protagonista do romance, dialoga interiormente com ele, evoca a sua vida, a teia complexa de relações entre os dois e ainda com Flora, a mulher de um e a mãe de outro. É o romance da memória, do tempo que flui, mas que se visita, se pensa e repensa, se reconstrói outro e o mesmo, à beira da vida e da morte, nas três coordenadas de um passado, de um presente e de um futuro vivenciados entre a angústia e a saudade.”

Ficha Técnica

Até ao Fim, Bertrand,  Lisboa, 1987.