Em Nome da Terra

“Estou agora num lar de repouso, chama-se assim numa tabuleta e na lista telefónica. Não estou mal. Há cá imensa gente a repousar, não estou. Mas muitos não querem. Têm a mania de estar vivos com as suas coisas à volta a dizerem-lhes que sim, não querem. Algumas velhas choram, vê tu, aquilo é que é uma mania.” (Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra)

“A gente chega ao fim, que é quando já não tem embalagem para haver mais futuro, e então senta-se. Estou sentado. Olho à volta, da frente para trás, que já não há mais frente para olhar. (…) As coisas aconteceram, fazem-se acontecer outra vez. Sobretudo o que valeu a pena e nos pôs um pouco de contentamento na alma. Purificar as coisas das chatices que também lá estão. Ou lembrá-las também a elas mas pôr-lhes à volta uma moldura de desculpa ternurenta. Um dia pensei: quando deu na bolha a Deus para criar isto por desfastio, soube a palavra para o efeito. E então eu digo – deve haver uma palavra sagrada para tudo, a questão é saber onde é que está. Mesmo o que é chato ou feio ou podre, se a gente souber a palavra certa deve ficar belo à mesma.” (Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra)

“Reli Em Nome da Terra em segundas provas de um jato (aliás, dois) aqui em Fontanelas. E pude aperceber-me melhor do que vale o livro. (…) Pude mesmo entender razoavelmente o que eu nele ‘quis dizer’. E o que quis dizer foi talvez que a significação de todo o contingente, e vão, e absurdo se resolve no ‘infinito’ E que há a sacralização do corpo, desde a epígrafe tirada de S. Mateus. E que há na mulher amada uma eternidade que vai além da corrupção e é o absoluto do seu ser. Achei também que as várias componentes do livro se ajustam num todo. Sobretudo creio ter conseguido superar a lástima da degradação de um corpo numa significação metafísica e equilibrar o espetáculo repulsivo dessa degradação com a escrita discreta e mesmo algum humor que espero não tenha pisado o risco.” (Vergílio Ferreira, Conta-Corrente Nova Série II)

“A incomunicabilidade ‘eu’ – ‘tu’, uma problemática já assumida programaticamente em Estrela Polar, concretiza-se em Em Nome da Terra na pungente relação de João com Mónica depois de atacada pela loucura senil, uma relação de comunicação impossível com alguém que já não pode ser um ‘tu’ porque deixou de ser um ‘eu’: o corpo desabitado do ‘eu’, versão simétrica do ‘eu’ desapropriado do corpo.

(…)

‘Querida. Veio-me hoje uma enorme vontade de te amar. E então pensei: vou-te escrever’ (p.9)

Escrever-lhe uma carta ou também ‘escrevê-la’ a ela, criá-la na escrita? O ‘tu’ e o diálogo não passam de uma ficção da linguagem que tem uma vocação dialógica inerente ao facto de ter nascido na e para a interação face a face, de ter sido criada pelo Homem para vencer a sua irremediável solidão, chegando até ao Outro e até ao Real. Vocação tão forte que dela lhe advém mesmo o poder de criar esse Outro e esse Real que, afinal, não existe senão com a realidade que a linguagem lhes dá.”

Ficha Técnica

Em Nome da Terra, Circulo de Leitores, Lisboa, 1991