Ficha Técnica

Na Tua Face, Ed. Bertrand, Lisboa, 1993

Na Tua Face

“Acabou o tempo da beleza raquítica e pindérica, da harmonia pirosa convencionada como tirar o chapéu que já ninguém usa, da expropriação da vossa ontologia, da marginalização da vossa verdade natural, da afirmação exclusivista da luz, da exclusão do estrume para a estrumeira municipal depois de servidas as flores com que os exploradores se enfeitam, (…) Hoje é o tempo da treva, do disforme, do ódio que gera a disformidade para a haver quando a não há, da glorificação da sordidez e do horror, da reabilitação do excremento para ele ser também filho de Deus e Deus se não queixar de lho quererem roubar, da extensão da maravilha ao que está antes de ela ser e se cumpre na vida como um intestino grosso.” (Vergílio Ferreira, Na Tua Face, 69)

“Trago em mim o meu tempo de horror. Da verdade da vida que é essa. Não a da chamada beleza, essa coisa linfática delicada pindérica. O feio o horrível, porquê horrível? porquê belo? Foi o homem que o criou e o homem está morto.” (Na Tua Face, p. 128)

“Queria criar um mundo atravessado de fealdade. Queria saber qual a legitimidade do ‘feio’ da Natureza. Queria saber porque é que a arte escolhe hoje o feio para ser belo em vez do belo. Mas queria saber muitas outras coisas em torno disso e que não sei se sei.” (Vergílio Ferreira, Conta-Corrente Nova Série III)

“Um livro onde, como é comum em Vergílio Ferreira, há duas mulheres, Ângela e Bárbara, com nomes também significativos na economia semântica do texto. Ângela, que substitui o amor impossível por Bárbara (a qual desaparece um pouco misteriosamente no início, para só voltar a aparecer no fim), tem com ele dois filhos, Luc e Luz; este segundo par problematiza a relação da progenitura, simultaneamente sombria e ‘iluminada’, também motivadora de perplexidade; quer através da morte do filho (espécie de ofuscação da ideia de futuro), quer através da vida de Luz (rapariga feia, de êxitos sexuais enigmáticos e perversos, fotógrafa de profissão, que ‘ilumina’ simbolicamente as incongruências do mundo). A monstruosidade aparece sobretduo numa personagem lateral, o Serpa sapo, um aleijado (…) que vence uma corrida de deficientes, numa das sequências trágico-grotescas mais conseguidas de toda a obra de Vergílio Ferreira”

“Com esta gente e mais uma Bárbara autêntica e decrépita, reencontrada no último capítulo do romance, Vergílio Ferreira constrói uma obra de inaudita violência, sem concessões, sem espaços para a alegria e para o prazer, de uma crueldade radical e de uma ferocidade sem limites contra o erro natural inaceitável, mas fá-lo num estilo fascinante que é ainda um modo – o seu modo – de recriar, em beleza, o quotidiano pavoroso que vê como nosso.”