Ficha Técnica

O Caminho Fica Longe. Lisboa : Editorial Inquérito, 1943

O Caminho Fica Longe

“Rui leu a notícia da morte de Luísa na porta da Associação Académica. O enterro teve grande acompanhamento. Houve quem anotasse: ‘Formidável, caramba! Há muito que não via um enterro assim’. Rui seguira a urna de perto. Ia seco, passado de um palor de cadáver. E ia só, desligado de toda a gente. Dir-se-ia que ninguém mais acompanhava Luísa. À roda dele, estabelecera-se o vazio; à roda dele e à roda de Luísa: eles sós ali. Mas ela não ia no caixão, e aquele fatinho branco com que a vira vestida, havia minutos, dava-lhe a vaporosidade de um ser ideal. Luísa erguera-se, andara, e ia ali ao pé dele. Na cor branca de cal das faces, alastrava um tom róseo, medroso. Os olhos azuis readquiriam meiguice. Linda, a Luísa! E toda vestidinha de branco, com a massa loira dos cabelos espumosos em que pousava um véu de renda subtil! E o véu crescia, rolava… Já lhe caía aos pés, e, por um capricho estranho começava a alongar-se, rastejando em causa. Luísa noiva, de braço dado agora. Braço fino. Cinturinha débil. À volta deles, circulavam ondas de um murmúrio espraiado. Toda aquela gente que ali vinha formava, afinal, o cortejo de convidados para o festim. Luísa risonha e ele… tão feliz. (…) Luísa, a virgem, a rapariga que ele arredava escrupulosamente, da imaginação, nas noites de sábado, Luísa ia ser dele.”, Vergílio Ferreira (O Caminho Fica Longe)

“Esta figura feminina [Luísa] do primeiro romance do autor merece um comentário, ainda que breve. Ela está na base, quanto a mim, de uma grande série de figuras femininas que percorrem os romances de Vergílio Ferreira e que têm em comum a dimensão legendária de que o romancista as investe, a ponto de constituírem como que uma única personagem, sempre a mesma e cada vez mais complexa, e de nos ficar a nós, leitores, a dúvida se realmente existiram na diegese do(s) romance(s) como, por exemplo, Oriana de AF e Bárbara de NTF, ou só na mente mitificante do protagonista (ou do narrador).”

“O livro foi escrito aos vinte e três anos, provavelmente sem outro propósito senão o das motivações que já impulsionavam o escritor para o romance não gratuito, diríamos, o romance pensado (romance na cabeça de Rui, o protagonista que mediatiza o desenvolvimento da narrativa). Não havia em Vergílio Ferreira a intenção de ser presencista, ou até neorrealista, mas a de ser unicamente romancista, e por isso é que tal obra nos parece tão relevante: porque nos mostra uma das linhas fundamentais da ficção portuguesa no limiar dos anos 30/40, talvez mesmo residualmente por mais dez ou vinte anos, pois é notória a influência de José Régio, ou do seu processo vasculhador da alma humana, em romancistas que continuaram empurrando as suas personagens para o jogo da cabra-cega.

(…)

Mas não podemos terminar sem nos referirmos ao teor profundamente reflexivo do romance que, mesmo incipientemente, já pertence ao futuro do romancista-pensador; e assinalar as funções existenciais de certas situações e de certos vocábulos, entre eles a morte, a noite e o silêncio (este repetido obsessivamente), situações e vocábulos que iniciam o trabalho larvar de um escritor á espera do seu estilo definitivo.”