Ficha Técnica

Cântico Final. Lisboa : Editora Ulisseia, 1959

Cântico Final

O primeiro nevão aparecera com o anúncio do inverno; e durante dias não cessou a dança fantástica dos flocos brancos na distância raiada do horizonte. Lago dos cisnes, aceno longínquo, aceno de sempre. Através das janelas do seu quarto, Mário assistia pela última vez a essa visita de uma certa inocência maravilhada – dádiva miraculosa dos velhos contos de fadas à pobreza da montanha, ao seu pobre corpo destruído. Mundo insondável das finas vibrações, lúcida visão de um riso de outrora, fugidio aceno de uma verdade de origens – como vos amo, como vos lembro! (…) Sentia-se profundamente bem, quando as dores o esqueciam um pouco, sentia um prazer quente, como um bafo na face, em olhar a neve que não cessava de cair, em escutar essa vibração íntima do silêncio que alastrava com ela sobre a terra. E ao ouvir uma palavra erradia dos vultos breves que passavam no caminho, ao pressentir de novo essa obscura união da montanha ao frémito dos astros, de tocar, como numa suspeita, o intrínseco recolhimento do mundo a uma hora primordial de verdade indizível – qualquer coisa mais forte e intocável do que uma presença na noite o gravava de um apelo de paz, de resignação, de desistência, como a evidência serena de um limite atingido.” Vergílio Ferreira (Cântico Final)

“Depois falou-se uma viagem à montanha. Sim, iriam todos. Mário falava com frequência da ‘metafísica’ da sua serra, dos nevoeiros, dos nevões, do signo de eternidade que marcava a sua aldeia. E dizia que só a subida até ela poderia operar a depuração para entendê-la.” Vergílio Ferreira (Cântico Final)

“Mas o que mais me comoveu até a um arrepio na carne foi aquela primeira frase musical com que abre o 2.º ato do Lago dos Cisnes. Ao seu eco, ao seu aceno longínquo, escrevi todo o Cântico Final. Voz intensa, longa, apelo que vem do lado de lá da vida, memória obscura de um tempo perdido, ela levanta-se como a imagem da nossa beleza já morta, reinventa-me uma saudade do que nunca existiu.” Vergílio Ferreira (Conta-Corrente 2).

“Mas muitas vezes o livro atinge uma qualidade que não rejeito, em que me vejo ainda hoje e julgo portanto certa. Assim me parece que a bailarina é uma personagem bela e forte. Sobretudo me parece que a ‘história’ é um achado, no seu cruzamento do erotismo, morte, arte, metafísica, no seu desgarro com um não sei quê de aventura e limite. (…) Escrevi-o numa viragem do meu percurso e daí a dificuldade que tive em realizá-lo. Aparição vai esclarecê-lo no que ele tinha de ‘novo’. Mas de um ao outro, de todo o modo, alguma coisa se perdeu: uma certa grandeza das personagens, não devidamente marcada, todavia, em equilíbrio adulto, e que em Aparição raramente se afirma.” Vergílio Ferreira (Conta-Corrente 4)

“Em Cântico Final (de notar a ressonância religiosa, e mesmo litúrgica, da palavra cântico), o canto não é particularizado nem é um canto stricto sensu, mas metáfora de um universo onde a Arte tem lugar primacial.”