Realizaram-se, pela primeira vez após a Revolução de Abril, as comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, no dia 10 de junho de 1977, na cidade da Guarda, como nos lembra Alípio de Melo[1] que integrou a “Comissão local organizadora do evento”. Para a Sessão Solene foram convidados Vergílio Ferreira, por proposta do mesmo Alípio de Melo, e Jorge de Sena. No texto introdutório a Jorge de Sena – Vergílio Ferreira: Correspondência, Mécia de Sena assinala que foi nesta ocasião que conheceu pessoalmente o autor de Aparição e a última em que se encontraram os dois escritores.

  • Capa do Livro com as Comunicações do Dia de Portugal

  • Fotografia de Vergílio Ferreira incluída em Camões e a Identidade Nacional

  • Capa de Espaço do Invisível IV

Evoca ainda a confusão que se instalou no momento em que o autor de Signo Sinal discursava, pelo que poucas pessoas o terão escutado “por causa do burburinho permanente da assistência e dos que, de fora, tentavam a todo o custo entrar naquele ginásio improvisado em sala de sessão solene, apesar da total impossibilidade de nele caber fosse quem fosse mais.”[2] Na entrada do diário desse dia, Vergílio Ferreira manifesta um óbvio descontentamento pela fria receção que o seu discurso provocou no auditório, sobretudo quando comparado com a aclamação entusiasta recebida por  Jorge de Sena, não se esquecendo de referir, porém, que o público esteve “sempre ruidoso durante os discursos.”[3] Numa outra entrada descreve as reações da comunicação social e o papel subalterno que lhe reservaram em contraste com os rasgados elogios à intervenção de Jorge de Sena. Por aquela altura acredita, todavia, que o seu texto conseguirá suplantar, quando for editado, o desempenho menos conseguido do orador: “Devem ser publicados os dois textos. A ver o que me parecem quando reduzidos ao que lá está, e não ao que esteve na garganta dos oradores e no sistema nervoso dos ouvintes.”[4]

Sob o título “Da ausência, Camões”, a comunicação de Vergílio Ferreira será efetivamente inserta em Camões e a Identidade Nacional (1983), recolha das intervenções proferidas no dia 10 de junho, entre 1977 e 1982, bem como em Espaço do Invisível IV. Todos os textos incluídos em Camões e a Identidade Nacional são precedidos da fotografia do respetivo autor, sendo de registar o facto curioso e sintomático de a imagem do autor de Aparição ser a única que não foi captada durante o discurso proferido no dia de Portugal, de Camões e das Comunidades[5].

Em “Da ausência, Camões”, Vergílio Ferreira não celebra apenas o país e o poeta de Os Lusíadas, mas também a liberdade. De facto, não esquece a conjuntura política e social dessa época, bem como a inquietação que sente perante a possibilidade de os ventos de Leste chegarem cá, transformando o país numa espécie de satélite da União Soviética na Europa Ocidental. Daí a necessidade de todos os portugueses, no seu entendimento, se definirem “na responsabilidade do que há-de ser[6] o país no futuro. Três anos decorridos após a Revolução de 1974 considera ainda grave que “a um problema imediatamente económico, nós sobreponhamos um problema de ideologia.”[7] Ora a liberdade não é compatível, para Vergílio Ferreira, com as ortodoxias políticas, mesmo que pareça a muitos excessivo misturar, naquele dia, “o nome de Camões ao que imediatamente nos perturba e aflige.”[8] O próprio poeta lembra, contudo, a “necessidade de nos não perdermos de nós, de nos reconhecermos a nós próprios, à nossa individualidade, no meio da amargura e sobressalto.”[9]

Vergílio Ferreira cita abundantemente a poesia camoniana – contrariamente à intervenção de Jorge de Sena que cita somente um verso do grande poeta –, sem esquecer os seus adorados Eça de Queirós e António Nobre. Também Fernando Pessoa comparece neste ensaio, bem como o seu companheiro da jornada daquele dia – o que não sucede, de novo, com Jorge de Sena que em nenhuma ocasião do seu discurso se refere ao autor de Rápida, a Sombra –, sendo ainda marcante que, por intermédio do grande poeta, seja dele próprio que por vezes fale, nomeadamente ao relevar a importância da Arte na vida de Camões: “Não que a arte lhe seja bem uma compensação, um refúgio, um modo de equilibrar em prazer o desprazer da vida. Ela é a tradução mais sublimada de um destino que se assume e se transcende na realização artística.”[10]  O mesmo se poderá afirmar em relação a este excerto: “a arte era para ele um valor sublimado, essa arte que só quem a não ‘sabe’ a não ‘estima’, a forma mais alta do seu encontro consigo, um valor que de algum modo o superava, a morada final de quem está já prometido à morte. É preciso entender o que significa a arte para Camões, para entender o que pode significar um aparentemente excessivo elogio de si próprio. Não é a si que o poeta elogia – é o que nele encarnou e o excede, porque pura e simplesmente é maior do que ele.”[11]

Vergílio Ferreira conclui esta intervenção, empunhando, uma vez mais, a bandeira da liberdade que pretende seja também a dos portugueses, de forma a quem vive no país ou fora dele sinta Portugal como “um todo, na terra que é o nosso lugar no mundo, na cultura que é o nosso modo de ser em elevação, na língua que é o nosso modo de pensar e de ao mundo, ou à distância dele, tornarmos transparente”[12]. Não é, pois, tempo de exacerbados nacionalismos, apanágio dos “patriotarrecas” denunciados por Eça de Queirós, nem de submissão a igualitarismos totalitaristas, mas de união entre todos os que, afinal, “a distância não anula”[13]. Desta maneira, se a “apagada e vil tristeza” do verso de Camões, igualmente citado nesta comunicação vergiliana, poderá se transmudar na imagem de um país nas margens da História após os Descobrimentos, os portugueses não têm, porém, de continuar, no presente, o seu caminho com este sombrio horizonte à sua frente, pois, como assinala, não “está nas nossas mãos a nossa sorte (…), mas está fazer que seja nossa.”[14]

[1] In Vergílio Ferreira – Escrever e Pensar ou O Apelo Invencível da Arte, 2017: p. 576.

[2] In Jorge de Sena – Vergílio Ferreira: Correspondência, 1987: p. 9.

[3] In Conta-Corrente 2, 2.ª ed., 1981: p. 59.

[4] Ibidem.

[5] Além dos originais de Vergílio Ferreira e de Jorge de Sena, este livro contém ainda os discursos de Fernando Namora (1978), Vitorino Magalhães Godinho (1979), David Mourão-Ferreira (1980), Eduardo Lourenço (1980), Agustina Bessa-Luís (1981) e José de Azeredo Perdigão (1982).

[6] In Camões e a Identidade Nacional, 1983, p.14.

[7] Idem: p.15.

[8] Idem: p. 16.

[9] Ibidem.

[10] Idem: p. 18.

[11] Idem: p. 19.

[12] Idem: p. 15.

[13] Idem: p. 20.

[14] Idem: p. 21.